terça-feira, junho 16

Orlandos

Um sequestro na Baixada Fluminense*

Sexta-feira, quase meia-noite, outubro de 1994. Estava indo para Teresópolis. A estrada tinha pouco movimento e eu dirigia tão à vontade que custei a perceber o Santana ao meu lado. Dentro, quatro homens, com armas apontadas para mim, faziam sinal e gritavam para encostar o carro. Juro que não me dei conta da situação. Fiquei olhando e fiz um sinal do tipo “não me amolem”. Eles ficaram histéricos e quase bateram seu carro no meu. Nos aproximamos de um ônibus, que ia pela direita, na faixa deles, a baixa velocidade. Tiveram que frear e aproveitei para arrancar, perdendo-os de vista. Na altura do Alemão, nervoso, parei em frente à churrascaria La Strada, onde ainda havia bastante movimento. Respirei fundo e recostei-me no banco para descansar. Não tive tempo. Na frente de todo aquele povo, com tudo iluminado, adentraram o carro, passaram-me para o banco de trás, com um deles ao meu lado, apontando uma pistola para minha cabeça: “Doutor, isto é um seqüestro.”

O Mercedes tinha câmbio automático. Começou a pular e o motorista não conseguia controlá-lo. “Doutor, como é que eu faço!?” Pedi calma ao rapaz e passei a dar as instruções. Orientei também a saída para a estrada (que ele errou duas vezes, subindo pelos canteiros) e como fazer retorno no entroncamento para Teresópolis. Pegamos a direção do Rio e entramos no caminho de Caxias. Não havia o que fazer. Fiquei quieto, recostado no banco. Logo em seguida entramos em um lugar que parecia uma pedreira abandonada. Saltamos na escuridão e me puseram na mala do Santan. Eu cabia. Dava para respirar. Fiz do meu abrigo de jogging um travesseiro e relaxei. Também escondi meu Rolex (de aço, mas de estimação), amarrando-o no cordão da calça de jogging, por dentro. Ali ficou até eu ser libertado, pois ninguém se lembrou de me revistar. Corríamos muito e eles estavam tremendamente excitados.

Rodamos mais de uma hora. Quando paramos, abriram a mala, jogaram um lençol por cima de mim e fui sendo levado para uma casa com varanda. Podia ver os vultos através do lençol. Não pude entrar. Sentei-me na escada da varanda, com um deles, enquanto uma discussão pesada ocorria lá dentro. Lá fora, o meu guardião dava algumas instruções: "todos deviam ser chamados de Orlando", indistintamente. "Aquilo era um seqüestro, doutor, coisa séria!" Argumentei que eu não era um seqüestrável, que não tinha dinheiro, era um profissional que trabalhava para viver. A cada afirmação, Orlando revirava os olhos, apontava para o alto, como se os céus nos estivessem ouvindo, e dizia: “Veja lá, doutor, não fale assim, Deus castiga!” Sorria para mim, como se eu fosse uma criança apanhada em mentira. “Se o senhor nos ajudar, tudo vai sair bem!” E me advertia para não ficar observando as coisas, nem querer saber onde estávamos. Sempre repetia que tudo ia acabar bem, era só eu e minha família colaborarmos. E a conversa seguiu por quase uma hora. Lá dentro o pau comia. Depois eu soube que meu seqüestro fora uma operação independente, uma espécie de “free-lance”. Não tinham autorização para fazê-lo e estavam tentando convencer o resto do pessoal a me aceitar.

Quando pude entrar, deparei-me, num pequeno quarto, com um senhor de aspecto distinto, apesar do olhar cansado e da barba por fazer. Aparentava setenta anos ou mais. Estava deitado em um sofá. Olhou-me, sem nenhuma expressão, calado e como que indiferente. Deitei-me num tapete que havia no chão, com o mesmo travesseiro improvisado da mala do carro, e fiquei quieto. Passamos assim a noite toda, em silêncio. Não dormi, não estava excitado ou nervoso, mas procurava guardar forças e compreender a situação. Não sabia quem era o velho, mas imaginava que fosse um companheiro de cativeiro. Era constrangedor. Sentia-me como que numa cabine de trem ou um quarto de hotel com um estranho. Apagaram nossa luz e deram boa noite. O velho respondeu, eu não. Nas noites seguintes fui mais sociável.

Pela manhã trouxeram o café bem cedo. Com pão e manteiga, e já adoçado, café de pobre. Eu só tomo café sem açúcar. Reclamei e pedi que fizessem sem açúcar. Foi quando o senhor me falou pela primeira vez. Pediu-me compreensão e paciência. Aquilo era um seqüestro, mas eles eram boa gente. Orlando prometeu que eles fariam para mim sem açúcar. A mulher dele, que tomava conta da cozinha, perguntou-me se eu queria “gotinhas”. Disse que não era preciso. A partir daí, eu e o senhor quebramos o gelo. Ele estava ali há mais de quinze dias. Tinha uma indústria de porte na Baixada Fluminense. Estava escrevendo suas memórias no cativeiro e, durante o tempo que estivemos juntos, contou-me muito de si. Tinha problemas de sucessão, os filhos não queriam nada com o trabalho e a empresa era o seu sonho. Depois de libertados, nunca mais nos encontramos.

Nosso quarto tinha o sofá do velho empresário, o meu tapete, uma cadeira e uma pequena mesa, que passamos a dividir. Por algum tempo ele ficava ali escrevendo nas folhas de chamex, depois me cedia o lugar. Conversávamos sobre nós e também muito sobre os Orlandos. Era um contraste muito grande. O que mais nos impressionava era a distância que havia de seu mundo para o que nós achávamos que era o nosso. E a sua total falta de perspectivas. Tanto eles como nós tínhamos perfeita compreensão de que não havia saída para a vida deles, e que, em breve, estariam todos mortos ou presos. Todo final de noite, quando eles voltavam dos assaltos (“das paradas”), havia uma cervejinha amiga, quando sentavam conosco e ficavam batendo papo. Na minha primeira noite, eles não largaram suas armas, mas depois deixavam-nas descansadas no chão. Mas nunca tiraram as toucas ou falaram nomes.

Havia da parte de nossos algozes uma imensa curiosidade e respeito pelo nosso saber. O que mais faziam eram consultas e perguntas sobre a vida e negócios. Eram espertos e inteligentes. E tinham humor. Sempre traziam curiosidades dos assaltos e nos perguntavam o que era. Lembro de uma vez em que trouxeram um projetor de slides. Imaginem como explicar o que era aquilo, para que servia, quanto valia e quem compraria. Nunca esqueciam de trazer papel e caneta para o meu companheiro. “Aí vovô, p’ro senhor escrever.” Eram fanfarrões, gostavam de se vestir bem e ter mulheres. Uma vez um deles entrou todo emperiquitado. Sapato de verniz com pom-pom, finíssimo, calça preta com um cinto com adereços prateados e camisa de seda com uma bela estampa em preto e branco. Brinquei com ele: “Aí Orlando, todo bonito?” Ia sair com uma nova namorada. Todo mundo riu muito quando elogiei suas roupas. Já solto, em casa, quando recebi a fatura de meu cartão de crédito, entendi a graça. Estava tudo lá, fora por minha conta.

O local do cativeiro era infernal. No final de outubro o calor já estava insuportável. Só bebíamos guaraná Pakera, do qual nunca tinha ouvido falar. Hoje eu não consigo esquecer. O problema de seqüestro é a expectativa. Não há nada pior. Às vezes eu ficava exasperado e perdia a paciência. O meu companheiro é que me segurava. Mas algumas brigas deram resultado. Consegui que trouxessem um ventilador (e depois eu não podia deixar de imaginá-los com seus fuzis e pistolas, procurando um lugar para roubar ventiladores, para não me ouvirem mais resmungar). Fiz com que trocassem as folhas de papel do banheiro por um papel higiênico razoável e que trouxessem um sabão neutro para a gente usar no banho. Arranjaram um sabãozinho de coco, que quebrava bem o galho.

Nossa única distração (além da cervejinha da noite, com os Orlandos) era ouvir, apenas ouvir, a televisão na hora do jornal. E, naqueles tempos, era melhor que nem se ouvisse. O noticiário era violento e assustador. Isso nos abalava mais. O que sabíamos das negociações era muito pouco. Segundo os Orlandos, minha mulher não queria pagar dez mil dólares pelo meu resgate. “Estranha essa sua mulher, doutor...” Na verdade eles estavam pedindo duzentos mil. Soube depois que usavam esta tática. Com o velho senhor também. Diziam que nem a família e nem seus sócios queriam pagar cem mil por seu resgate, Deviam estar pedindo bem mais. Estavam negociando com seu diretor financeiro, que vinha a ser seu genro. “Vovô, quando sair, dê um jeito naquilo lá. Se eu fosse o senhor, não confiava nesse sujeito.”

Numa noite vieram conversar comigo, preocupados. Não tinham conseguido “vender” meu seqüestro, ou seja, nenhum grande seqüestrador queria bancar o meu risco. Além disso, os meus cartões já estavam cancelados – quase executaram um dos Orlandos, que voltou dizendo que o caixa eletrônico comera o cartão. Meu testemunho de que isso acontecia salvou-lhe a vida – e estavam convencidos que não havia muito a ganhar comigo. Então, aquele que parecia ser o chefe dos Orlandos, comunicou-me que eu seria solto naquela noite. Me deixariam em algum lugar ali perto. Era quase meia noite. Fiquei furioso. Confesso que passei dos limites. “Como vocês pensam em me deixar por aí no meio da noite, estão malucos”?! Querem me matar? Não saio de jeito nenhum!”Armei um tremendo barraco. Não iria ser solto na Baixada, sei lá aonde, em plena madrugada. E tinha medo de que eles achassem mais fácil executar-me no caminho. Aconteceu que eles baixaram a bola, ainda bem. Disseram que me soltariam de manhã cedo, mas que eu tinha que entender que aquilo era um seqüestro, pó! Eu estava colocando em risco a parada do vovô, que era mais importante. Nos entendemos, ficamos combinados de, na manhã seguinte, irmos para a Rio-Petrópolis, em um lugar seguro.

Naquela noite a cervejinha foi mais festiva. Trouxeram pizza. Comemoramos até tarde. Tínhamos estado estremecidos, mas passara. Meu companheiro, como sempre, me pedia paciência com os “meninos”. “São boa gente, não brigue com eles”, afirmava. Bebemos bastante. O Orlando que tomava conta de nós, e que devia ser o chefe do grupo, também procurou tranqüilizar-me. Contou do “doutor do BMW”, que tinha sido sua vítima anterior, “uma cara muito bacana, boa gente”e do churrasco que fizeram na véspera de sua libertação. Mais tarde um delegado da DAS comentou que nós tínhamos dado sorte, porque todos os que haviam ficado naquele cativeiro tinham gostado muito deles (sic).

O Orlando que morava no cativeiro era pai de um garotinho de seus cinco anos, alegre, que de vez em quando botava a cara na nossa porta, olhando-nos com curiosidade e simpatia. Era filho da mulher que nos servia. Mas ela não era a única, contou-nos na última noite. Ele tinha outras três. Confidenciou-nos que estava tendo uma nova experiência, única, com um travesti. Estava encantado. Meu companheiro de cativeiro ficou chocado. “Meu filho, não nos conte suas intimidades”. Orlando ria e falava que nós não devíamos deixar de experimentar. Ele, em outra ocasião, me havia oferecido trazer umas meninas (menores). Eu disse que ele estava maluco, como eu ia ter condição de fazer alguma coisa naquela situação. Ele não ficou convencido. Passado um tempo ele confidenciou-me: “Se o senhor quiser umas branquinhas, a gente arranja.” Falei que não era isso, mas ele não se convenceu.

No dia seguinte à confraternizção acordamos tarde. Não ouvíamos ninguém na sala. Estávamos, os dois prisioneiros, de ressaca e com uma tremenda sede. Fazia muito calor. Começamos a chamar por Orlando, e nada. Passado mais tempo gritávamos: “Orlando, estamos com sede”. Nada. O senhor me disse para ir até a cozinha. Mas eu não iria, de jeito nenhum. Foi a minha vez de dizer que aquilo era um seqüestro. E eu estava para ser libertado, não iria me arriscar. Numa de minhas primeiras idas ao banheiro eu já havia sido surpreendido ao encontrar atrás da porta um papelzinho da SUCAM, com o endereço da casa. Fiquei assustado por saber onde estávamos, com medo de eles um dia perceberem o furo e acharem, com toda razão, que descobríramos o local do cativeiro. Nunca comentei o fato com meu companheiro, nem ele comigo, se um dia também percebeu. Cansamos de gritar e fomos ficando cada vez mais em silêncio. De repente ouvimos movimento fora da casa. Passos e murmúrios. Voltamos a gritar. Ouvimos alguém falar que havia gente na casa.

“Quem está ai?”
“Estamos presos aqui. Só nós.” Respondemos.
E eles entraram. Ficamos aterrorizados. O velho senhor dizia: “é outra quadrilha, vão nos matar!” Confesso que eram mais assustadores que os Orlandos. Foram entrando, derrubando tudo, menos as televisões, os vídeos e alguns equipamentos roubados que estavam na sala e que foram sendo levados para fora antes sequer de tomarem conhecimento de nossa existência. Disseram o nome da equipe policial a que pertenciam e foram nos colocando em um Opala velho. O meu companheiro insistia em que seríamos executados. Não acreditava que fossem policiais.
Eram.


Meia hora mais tarde estávamos em uma unidade policial, prestando esclarecimentos. Lá fora, as equipes de tv nos esperando para os dez minutos de fama. Telefonei para minha mulher. Conversamos emocionados. Ela sofrera muito com a incerteza, e pelo fato de, durante o cativeiro, eu haver ganhado o meu primeiro neto. Um menino. Ela tinha tido medo de seu nascimento estar relacionado com a minha morte, e de eu nunca conhecê-lo. Mas tudo havia dado certo. Só não tinham escolhido o nome do menino, esperando pela minha opinião. “Tudo, menos Orlando”, falei.

*Relato de uma vítima de sequestro a Zeca Borges.

segunda-feira, maio 4

Empatia

Não esqueço aquele dia de julho de 1967. Eu saía do edifício Marquês do Herval, no centro do Rio. Todos os que freqüentaram a livraria Leonardo da Vinci, no subsolo, ou o escritório de Hércules Correia, num dos andares do alto, sempre recordam aquela espiral da saída.

Pois eu estava lá, no fim da espiral, quando percebi os papéis picados caindo no chão da avenida Rio Branco. Eram poucos e tímidos. Os tempos eram difíceis. Fui subindo em direção à Presidente Vargas, curioso, olhando as janelas dos prédios. Elas se abriam e logo a mão de alguém lançava um punhado de papéis picados.

Ao chegar à esquina da Nilo Peçanha, quando a vista se alarga para os lados do Castelo e da Carioca, pude perceber a festa silenciosa. A chuva branca aumentara, espalhara-se pela São José e pelo alto da Rio Branco.

Esperando o sinal abrir, ouvi a notícia: o marechal Castelo Branco morrera num acidente no Ceará. As pessoas sorriam e se abraçavam. Cruzavam os olhares cúmplices pela rua. Encontrei um amigo. Abrimos os braços, alegres. Trocamos notícias e boatos.

Naquela noite os bares ficaram cheios, como se um América de todos nós tivesse sido campeão. As comemorações atravessaram a madrugada. E olhem que foi um acidente, o nosso primeiro ditador de plantão fora vítima de um mero choque de aviões no céu de Mecejana. Não sei como foi na Nicarágua, quando Somoza morreu, em 1980. Teria havido mais vibração? Afinal, sua morte foi obra de um atentado. Um tiro de bazuca explodiu o seu carro blindado, em Assunção.

É curioso como as pessoas comemoram a morte e o justiçamento de tiranos. Lembro-me sempre da foto de Mussolini e Carla Petacci, fuzilados e pendurados num posto de gasolina em Milão, o povo ao redor, gente sorrindo. Uma festa popular. E, muitas vezes, os matadores viram heróis. Encontrei outro dia, na seção "Há 50 Anos", da Folha de S. Paulo, a seguinte manchete de primeira página: "A CÂMARA URUGUAIA HOMENAGEIA UNANIMEMENTE A MEMÓRIA DO MATADOR DO PRESIDENTE SOMOZA. Era tio do ex-ditador morto no Paraguai. O justiceiro homenageado foi o jornalista Rigoberto Lopes Pérez, morto logo após o atentado.

Quando vi e li os comentários sobre o comportamento das platéias do filme Tropa de Elite, aquilo me lembrou a comemoração pela morte de Castelo Branco. O que liga esses dois acontecimentos, o que me surpreende, é o fato de algumas pessoas acreditarem que todos aqueles que, nos dias de hoje, lutamos pelos direitos humanos - e muitos de nós lutaram contra a ditadura - se devam comover com a morte de soldados do tráfico de drogas.

Se festejamos a morte de grandes tiranos, porque alguns ficam perplexos diante da satisfação de outros pela morte e o sofrimento dos tiranetes do nosso cotidiano, que não dariam chance a uma mulher grávida, ou a um policial voltando do trabalho?

Não posso falar pelos outros, mas devo afirmar que não me comove o mais trágico destino de qualquer desses criminosos. Sei quem são, e nessa luta não há lugar para tolos. É possível que a questão não esteja em quem morre, mas em quem mata. Na verdade, o que interessa nessa história toda, é o comportamento da minha polícia. Se um traficante é executado por um policial, é estabelecida uma grave ameaça contra qualquer cidadão, contra todos nós. E é isto que é inaceitável.

Se um criminoso morre numa disputa de facções ou em confronto com a polícia, tudo muda. Mas se a polícia sair por aí executando, mesmo que só morram criminosos, a violência ficará incontrolável. Repito: não me comove a morte de um bandido, mas se for uma execução, me preocupa. Aí estaremos todos correndo risco, por mais encastelados que estejamos. E mais ainda os moradores das comunidades.

A garantia efetiva que qualquer cidadão tem de que os seus direitos serão respeitados pela polícia, é essa polícia respeitar os direitos do pior dos bandidos. Se ela o faz, certamente respeitará os dele. A garantia que temos, simples cidadãos, não está apenas no fato de estarmos numa democracia, o Congresso estar aberto, haver juízes de plantão, os jornais estarem rodando livres. Isto ajuda, mas se tem mostrado muito distante de nosso dia a dia.

Insisto: a garantia efetiva que temos é a prática diária de nossa polícia. E é por isso que devemos lutar e exigir um compromisso dessa polícia com o respeito rotineiro aos direitos de todos. Por nós e por eles, os policiais - jamais pelos bandidos.

terça-feira, abril 28

Anotações de como o Rio venceu o sequestro.

No final de 1997, foi sequestrada na Tijuca uma senhora de 74 anos, mulher de um ex-presidente de uma grande multinacional. Um mês antes o Rio tinha estabelecido um plano de combate ao seqüestro, baseado num acurado diagnóstico. Era este seu primeiro grande teste.

A DAS iniciou suas investigações, de acordo com as diretrizes programadas: além do uso de tecnologias avançadas de inteligência e de investigação, três objetivos principais deveriam ser atingidos para a operação ser considerada um sucesso: a vítima deveria ser libertada graças à ação da polícia; o resgate não poderia ser pago; e seqüestradores deveriam ser presos. O delegado Marcos Reimão não abria mão de qualquer destes princípios, tendo em vista que o objetivo final era livrar o Rio de Janeiro daquele tipo de crime.

Acontece que, nem bem iniciadas as investigações, entraram em cena executivos ingleses, de uma empresa especializada em negociar libertação de reféns para seguradoras internacionais. Logo ficou claro que havia uma diferença de objetivos entre os dois grupos. Foi percebido que aqueles estrangeiros gentis podiam estar ocultando dados, em favor de sua estratégia de levar os seqüestradores a libertar a vítima assim que possível. Reimão colocou - sem informar detalhes de sua qualificação - um delegado fluente em inglês acompanhando as negociações, que confirmou as suspeitas da equipe. O que os executivos estavam negociando com a família e a matriz era diferente do que era relatado à DAS.

O mais grave, porém, é que o time da casa não conseguia avançar na identificação da quadrilha e na localização do cativeiro. Às vésperas da data limite estabelecida pela quadrilha para o recebimento do resgate, havia apenas frágeis suspeitas sobre a origem do grupo e seus métodos, além de alguma idéia sobre as áreas de que partiam as ligações para a família.

Na madrugada de 24 de dezembro as equipes da DAS estavam preparadas para o acompanhamento da gincana que precede o pagamento do resgate. Naquela manhã os negociadores ingleses sairiam pela cidade, sob orientação dos criminosos, para percorrerem diversos pontos, recolhendo bilhetes e indicações, de modo a permitir que a ausência de polícia na operação fosse verificada. Pelo final da tarde determinariam o local da entrega do dinheiro.

A primeira decisão de risco foi tomada na véspera: distribuir equipes pelas áreas que eram indicadas como prováveis locais de chamada pelos negociadores da quadrilha, esperando a única oportunidade para prendê-los, que seria logo pela manhã, no contato que daria início à gincana. A distribuição foi precisa: quando a ligação ocorreu, o rastreamento indicou um local no Centro, há menos de 500 metros de uma das equipes. Ocorreu que, quando a equipe foi contatada, ainda não tinha chegado ao local, estava atrasada! E a oportunidade melhor calculada foi perdida, deixando a sensação de ouro em pó escorrendo entre os dedos.

As equipes tentaram manter algum ritmo, inutilmente. Eram seis horas da tarde, com quase todos os procedimentos da gincana completados, faltando pouco para o dinheiro seguir, e nenhuma prisão fora feita, nenhuma nova informação chegara. Como abortar o pagamento sem uma contrapartida que desse segurança à vítima? Quando dinheiro saiu, uma moto e um carro não ostensivo da DAS aguardavam defronte ao flat dos ingleses, que foram seguidos discretamente. A gincana estava em seus últimos passos. Mais um bilhete, e o pagamento seria feito.

Foi quando o destino aprontou outra. A equipe de Vila Valqueire obteve pistas seguras do local do cativeiro. As equipes todas foram direcionadas ao local. Mas havia um problema: não haveria tempo para libertar a vítima e, depois, abortar o pagamento. O que fazer? Estava em jogo uma vida. Seria muito mais fácil permitir o pagamento do resgate e libertar a senhora, se fosse o caso. Nenhuma carreira correria qualquer risco, apenas o plano de ação naufragaria, nada mais.

O agente inglês levou um susto, quando teve seu carro fechado. Acreditava serem os seqüestradores. Um delegado de polícia identificou-se e informou-o que, por determinação do delegado titular da DAS, o pagamento não poderia ser feito e convidou-o a ir até a Divisão com o dinheiro do resgate. Um motorista da polícia assumiu a direção do veículo e dirigiram-se ao Leblon.

O local do cativeiro foi cercado por mais de quarenta agentes. Era uma demonstração de força, para que os seqüestradores que lá estivessem se entregassem. Foi o que aconteceu. Eram dois homens e duas mulheres. Abriram as portas, apontando para as armas colocadas sobre uma mesa.

Eram nove e meia da noite, 24 de dezembro de 1997. A senhora estava algemada a uma cadeira, num canto de um quarto, assustada com o movimento. “Fique tranquila, eu sou o delegado Marcos Reimão, e estamos aqui para levá-la para casa.” Os olhos cansados brilharam. D. Ilka não foi para casa, mas passou aquela noite de Natal em uma clínica da Zona Sul do Rio, com seu marido.

O dinheiro foi devolvido à família.
A partir deste caso, nenhum seqüestro ocorrido no Rio resultou em pagamento de resgate.
Todas as vítimas foram libertadas pela polícia.
Mais de 200 envolvidos foram presos em dois anos.
A equipe que atrasou foi removida da DAS.
No ano seguinte a empresa inglesa mudou seus escritórios para São Paulo.